A História do Aquarismo
A origem do termo aquário (Aquarium – derivado de Aqua = água em latim) remonta aos antigos romanos, ou seja, ao povo que habitou o que hoje conhecemos por Península Itálica, no período histórico compreendido entre o oitavo século a.C. – antes de Cristo – e o quinto século d.C. – depois de Cristo, significando bebedouro para gado ou, menos frequentemente, reservatório para armazenar água. O nome passou a ter o significado atual a partir de 1854, com a publicação do livro The Aquarium, pelo naturalista britânico Philip Henry Gosse.
Outra palavra que os romanos nos legaram é piscina (piscinae) esta sim, diretamente derivada do vocábulo pisces (peixe em latim) sendo o nome dado aos tanques, geralmente construídos na orla marítima, onde a elite romana mantinha peixes vivos, quer para servir nos banquetes e bacanais (vale lembrar que não existiam geladeiras na época!) quer por motivos estéticos e/ou afetivos (várias referências anedóticas sobre pessoas se afeiçoando aos peixes mantidos em cativeiro podem ser encontradas na literatura da época).
As piscinae dulcis (de água doce) de construção e manutenção mais baratas eram mantidas pela gente do povo (plebeus) e costumavam ser rentáveis quando adequadamente geridas. Visavam principalmente abastecer ao mercado com produto fresco nos períodos de entre safra e escassez. Por outro lado as piscinae salsae (piscinas de água salgada ou água do mar), devido ao alto custo de construção, povoamento e manutenção eram exclusividade da classe dominante (patrícios) e visavam mais afirmar a riqueza, “sofisticação” e status do proprietário do que, propriamente, servir de reserva de alimentos ou dar lucro, constituindo-se, ao contrário, pesado ônus aos cofres do piscinarii (apelido depreciativo aplicado por Cícero a alguns de seus desafetos, significando criador de peixes).
Os romanos não foram os primeiros, e tampouco foram o único dos povos da antiguidade a se dedicarem à manutenção de peixes em cativeiro. Escavações em diversos sítios arqueológicos estão repletos de indícios que Sumérios, Assírios, Egípcios e Chineses também se dedicaram, em maior ou menor grau, a essa atividade. Mas na sociedade romana a atividade assumiu uma dimensão maior que nas demais culturas, estando muito melhor documentada, tanto na literatura, como por meio das ruínas que restaram de diversos estabelecimentos específicos para a manutenção de peixes localizados em diversas localidades ao longo do litoral de quase todo o território ocupado pelo império romano.
Mesmo assim as referências ao tema são raras e fragmentarias, por exemplo, Gaius Plinius Secundus, mais conhecido como Plínio o Velho (~23-79 d.C.) atesta em Naturalis Historia (História Natural, considerada a primeira “enciclopédia” a ser publicada e único trabalho de Plínio a sobreviver até os dias de hoje) que um tal de Lucius Licinius Murena foi o “inventor” da piscina em meados do primeiro século antes de Cristo.
Vale notar que o “sobrenome” Murena é, na verdade, um cognome (ou seja, uma espécie de apelido adquirido pelo indivíduo mais destacado da família em virtude de algum feito ou característica física, ou outra particularidade em que este se destacasse e que era transmitido à sua descendência) aplicado a algum antepassado de Lucius, justamente por que este ancestral gostava especialmente de comer lampreias, ou murenas como eram vulgarmente conhecidas na Roma antiga.
Axius um dos personagens da obra de Varro menciona Gaius Hirrius, como sendo a primeira pessoa a criar (manter) lampreias (peixes muito valorizados na gastronomia romana) em tanques de água salgada (piscinae salsae) afirmando que este cidadão gastava anualmente, não menos que, doze mil sestércios para adquirir alimento para os peixes. Uma soma apreciável de dinheiro considerando que, para termos de comparação, um legionário (soldado raso) das legiões romanas conseguia se manter (a duras penas, diga-se, visto que a indumentária, equipamento e armamento pessoal eram por conta dele) com 900 sestércios por ano (2,46 sestércios por dia sem os descontos, de acordo com a wikipedia).
É dito ainda que Hirrius tinha tal apreço pelas suas lampreias que por diversas vezes se recusou a vendê-las, no entanto, enviou, por empréstimo, milhares de exemplares (o número exato não é conhecido, com as estimativas variando, conforme o autor considerado, entre um mínimo de 2 mil e até 6 mil exemplares) a Gaius Julius Caesar quando este os solicitou para serem servidos em um dos seus últimos banquetes triunfais (46 ou 45 a.C.). Alguns dos tradutores das obras de Cícero são de opinião que “um tal de” C. Hirrius Postimius mencionado pelo autor em De finibus bonorum et malorum (“Sobre a finalidade do bem e do mal”) como um epicurista, talvez possa ser a mesma pessoa mencionada por Varro.
Quintus Hortensius Hortalus (114 – 50 a.C.) poderia ser considerado o primeiro aquarista, visto que Varro relata que ele mantinha piscinas, próximo ao vilarejo de Baulii (atual Bacoli, na Campânia), mas mandava buscar o pescado para ser servido à sua mesa no porto de Puteoli (Pozzuoli) do outro lado da baia, conforme testemunhou Axius por diversas vezes. Ele não media esforços nem despesas para suprir as necessidades de seus peixes, cuidando para que suas tainhas nunca passassem fome, mantendo uma frota de piscatorii (pescadores) para capturar os peixes miúdos que lhes serviam de alimento. E quando as tempestades impediam a obtenção deste alimento, mandava buscar nos mercados o peixe salgado que era um dos itens da alimentação dos romanos de classe baixa. Segundo o relato ele tratava melhor seus peixes que seus empregados e escravos. Dele disse Cícero, com alguma ironia jocosa, que havia chorado quando lhe deram a notícia que sua moreia favorita havia morrido.
Faz também uma comparação entre dois irmãos Marcus Lucullus (depois chamado de Marcus Terentius Varro Lucullus*) e Lucius Licinius Lucullus (118 – 57/56 a.C.). O primeiro dos quais tinha fama de ser negligente no trato de seus peixes, enquanto que o segundo chegou ao extremo de contratar, por alto preço, um arquiteto para perfurar um túnel (através de uma montanha) para levar água do mar para suas piscinas em Nápoles. A obra era tão engenhosamente projetada que o fluxo e o refluxo das marés proporcionava a renovação da água das piscinas, duas vezes ao dia. Tal feito fez com que Pompeu (Gnaeus Pompeius Magnus, 106 – 48 a.C.) o apelidasse de Xerxes de toga, em alusão a um fato histórico ocorrido uns três séculos antes, ou seja, ao canal que o rei da Pérsia tinha mandado construir quando preparava a segunda invasão da Grécia (480 – 479 a.C.). Não por acaso, Licinius Lucullus obteve sua fortuna pessoal principalmente por meio dos saques promovidos por suas tropas nos diversos reinos da região da Ásia Menor (Pérsia) e, posteriormente, ficaria famoso pelos jardins que projetou e fez construir (tanto em Nápoles quanto em Roma) copiando o estilo dos jardins que ele conheceu nessas províncias orientais.
Por fim, temos a história de um piscinarii que ficou famoso, não pelos peixes que mantinha, mas sim pela crueldade com que tratava seus subordinados, em especial, seus escravos. Por mínima falta, que algum destes infelizes cometesse, eram sumariamente atirados a um tanque repleto de murenas famintas. Não se tem certeza absoluta, sobre a espécie em questão, pois que moreias de tamanho grande, em grande número e famintas, podem, teoricamente, comer um ser humano inteiro, bocado a bocado, mas a alusão à alimentação com sangue parece indicar que poderia tratar-se de lampreias. Nesse caso a morte se daria, por choque, afogamento e perda de fluidos corporais, não necessariamente nessa ordem. Porém, como vocês mesmos podem comprovar assistindo a estes dois vídeos: aqui e aqui, essa hipótese pode ser praticamente descartada, portanto, deveriam ser moreias.
Publius Vedius Pollio (? – 15 a.C.) era filho de um escravo liberto, tendo amealhado fortuna e ascendido à casta dos cavaleiros (a segunda em importância na hierarquia romana e a mais alta casta que um plebeu poderia alcançar no sistema social de Roma, cujo ápice era a classe senatorial, reservada aos patrícios) Já aposentado, mudou-se de Roma para uma Villa que mandou construir na cidade de Pausilypon (Posillipo). Em certa ocasião, durante um banquete em homenagem a um amigo de longa data, ninguém menos que Gaius Julius Caesar Augustus (63 a.C. – 14 d.C.) herdeiro e sucessor de Gaius Julius Caesar e o primeiro Imperador Romano, aconteceu de um serviçal acidentalmente derrubar e quebrar uma taça de cristal. Tomado de um acesso de fúria, Vedius ordenou que o escravo fosse atirado às murenas. Aparentemente horrorizado com a desproporção do castigo em relação ao crime, e atendendo as suplicas do infeliz servente, Augustus imediatamente mandou seus oficiais reunirem e quebrou pessoalmente todas as demais taças de cristal existentes na sala.
a) Lampetra fluviatilis (Linnaeus, 1758) A lampreia de rio europeia. b) Detalhe da cabeça e dos espiráculos da lampreia de rio. c) Petromyzom marinus Linnaeus, 1758. Lampreia de água salgada. d) Pescaria e comércio de lampreias. Ilustração da versão europeia (séc.XV) do manuscrito medieval Tacuinum sanitatis (Como manter a saúde) manual de medicina árabe do século XI. Fonte Wikipedia.
Esse ato teve por efeito fazer Vedius cair em si, pois, ele não teria como justificar ter punido um criminoso e ter deixado outro culpado do mesmo crime escapar impune. E, ainda mais que se tratava do próprio imperador, sendo assim, mesmo a contragosto, não teve alternativa senão perdoar o desafortunado copeiro. Se Vedius se arrependeu de seus atos depois deste ocorrido, a história não registra, mas ao morrer, alguns meses depois, deixaria em testamento, boa parte de sua fortuna e propriedades a Augustus pedindo-lhe que com o dinheiro construísse algo, útil para os romanos, que perenizasse sua memória. Augustus fez demolir sua mansão de Roma e no local mandou construir um portentoso passadiço com teto sustentado por colunas (O Porticus Liviae), mas preferiu batizar a obra com o nome de sua própria esposa, Livia Drusilla (59 aC. ~29 dC.).
Ruínas da Villa de Publius Vedius Pollio em Posillipo, em primeiro plano uma das piscinas. Flickr Napoli – Parco archeologico Del Pausilypon. Fotografia de Armando Mancini. Fonte Wikipedia.
Pelos séculos vindouros essa história seria objeto de ensaios filosóficos discursando sobre ética e conduta moral. Ainda no século I da nossa era, a história foi recontada por Sêneca, o Jovem (Lucius Aenaeus Seneca Minor) e o já mencionado Plínio, o Velho, que por ser desafeto de Augustus, não faz menção a parte referente a sua clemência. No século seguinte a história é recontada pelo cristão Tertuliano (Quintus Septimius Florens Tertulianus (~155 – 220 d.C.). Esse último autor adiciona um pouco mais de “tempero” à essa escabrosa história, afirmando que Vedius mandava preparar algumas das murenas, assim que se empanturrassem, para poder gozar do “prazer” de provar o gostinho da vítima. Assim a memória de Vedius Pollio, veio a ser perenizada, mas, não como ele desejava!
Quanto a Villa de Pausilypon, foi reformada e transformada em palácio imperial, sendo ocupada até os tempos de Adriano (Publius Aelius Hadrianus (76 d.C. – 138 d.C.), o décimo quarto imperador a partir de Augustus. Ainda hoje, entre suas ruínas, podem ser vistos os tanques que abrigaram as famigeradas murenas.
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